Quando for grande quero um destes!! A carrinha tinha espaço para tudo!! A dona do Peugeot, uma miúda lindíssima devo dizer, estava a fazer mais ou menos o mesmo que eu. Mas em vez de por a mochila as costas meteu-a na mala do carro e fez-se à estrada!! Correcção!! Meteu-as, as malas, no carro!! Aquilo estava atulhado de… cenas!! Desde ferramentas, tenda, saco-cama, bolas, raquetes de ténis, sacos com roupa, comida, a trela do cão, tufos de pelo do cão, só não tinha o cão!! Tudo cabia desaconchegado dentro do carrito!! A Mary vivia para viver. Tinha um estilo cruzado entre o hyppie e o rastafari que lhe assentava de uma forma soberba. Partilhou comigo o plano de conhecer o pais que a vira nascer. Que já tinha percorrido metade da França e que se dirigia a Albi para visitar uns amigos!! Fizemos uma viagem calma, onde se desenrolou uma conversa essencialmente focada na correcção do meu francês. Eu ia largando as minhas calinadas e ela fazia a correcção da prova. Eu sei que sou suspeito ao dizer isto, mas passei com distinção!!
Digo-vos que foi uma hora bem agradável de partilha de experiências, ideias e ideais. Acompanhados por um sol de quase fim de tarde que não queimava e dava uma luz que brilhava num tom que eu nunca tinha sentido. O ar que entrava pela janela aberta era tão agradável que dava vontade de por a cabeça de fora, abrir a boca e deixar a língua esvoaçar ao sabor do vento!!
Despedimo-nos, desejamos boa viagem e boa sorte e fiz-me à estrada que apontava para Millou!! Caminhei um bom par de horas sob o mesmo sol até voltar a apanhar boleia. Durante alguns momentos senti um forte sentimento de arrependimento. Não pelo que estava a fazer, mas porque me cruzei com uma linha de caminho de ferro abandonada que me gritou a vontade de sentir o meu caminhar sobre as traves que dão sustento aos carris!! Sem destino e sem pensar. Ir apenas até onde me quisessem levar!! Acho que me acobardei!! E senti-me triste por não ter tido a coragem de a ouvir !! Nunca vou saber o que estava guardado para mim para alem daquele lugar. Encostei-me à guitarra e levantei o polegar. Penso que foram apenas 5 os minutos que tive que esperar. Um Mercedes classe A parou, sorriu para mim e perguntou para onde ia. Millou, respondi! Não vou para tão longe disse, mas vou avançar-te uns quilómetros. O bacano que estava ao volante tinha um rosto bastante jovem, sorridente e bonacheirão. E como todos, ou quase todos os outros que me deram boleia, a conversa começava quase sempre da mesma maneira!! Mas que raio andas tu a fazer por aqui, perguntou!! Enquanto ouviam a minha história, olhavam para mim, e eu podia ler nos seus olhos um pensamento parecido com: “Ganda maluko!! Destrancou-te alguma mola foi!?” A pergunta que vinha depois era quase sempre a mesma: “Mas porquê!? Porque te resolveste a fazer isto!!??” A primeira resposta que me ocorria era também para mim a única que realmente fazia sentido: “ Porque não!!??” Havia quase sempre um momento de riso, e a conversa seguia depois numa qualquer direcção. Neste caso foi a musica que segurou a comunicação. Saia das colunas do classe A um tipo de som que eu identifiquei como sendo de raiz celta. Mas havia por ali mais qualquer coisa. Fiquei a saber que essa qualquer coisa era a influencia da cultura Occitânica!! A Occitânia é uma nação sem estado que compreende grande parte do sul de França um pouquinho do norte de Espanha e também do noroeste Italiano!! Cultura que ainda segura um língua própria dividida em meia dúzia de dialectos, e que vai sobrevivendo ao avanço cerrado do oficial francês!! Agora imaginem uma gaita de foles celta misturada com um acordeão francês e uma voz cristalina a cantar qualquer coisa numa língua que nunca tenham ouvido!! Lindo!! O que uma pessoa se sujeita a aprender quando sai de casa assim, sem destino!! Estávamos a ter uma conversa tão interessante que a minha boleia me deu um bónus de mais alguns quilómetros. E em vez de me deixar num cruzamento no meio de nenhures levou-me até à vila mais próxima!! O dia estava a chegar ao fim, e com o aproximar da noite achei por bem começar a procurar um canto onde pudesse pernoitar.
Entrei numa mercearia local, abasteci-me de comida, paguei, sai e parei um pouco para olhar o descampado na esperança de encontrar o sitio ideal para montar a tenda. Mas sem grande sorte. Sou um tipo exigente!! A pé e tal mas não vou montar assim a tenda ao Deus-dará!! Tem que ser num sitio bonito, aprazível e bem arejado… Seja lá o que isso for!! Estava a caminhar pela borda da estrada a apreciar um por do sol lindíssimo por detrás daquela paisagem ainda verde completamente cultivada e ocasionalmente manchada por densos mantos florestais, característicos da região dos “ Midi-Pyrénées”, quando parou o Picasso!! Não o pintor espanhol, mas o Citroen!! Ao volante estava uma simpática senhora sexagenária, que me perguntou se queria boleia!! Fiquei meio atarantado porque já não esperava boleia aquela hora e muito menos de uma senhora que me parecia ser tão vulnerável. Agradeci, acomodei os meus pertences e lá partimos em direcção a Albam!! A simpática senhora estava viúva e sentia-se sozinha… Não é nada disso!! Eu já estou a ouvir as vossas cabecinhas pensadoras e escrever, realizar e editar o filme… nem é bom pensar nisso!! Eu também já me sentia sozinho, mas não assim tão sozinho;)!!!
Em Alban decorria a descamisada anual lá da terra. E era esta a razão que levava a senhora a sair de casa. Ir para a festa, estar rodeada de gente, conversar, conviver, beber uns copos, dançar e eu sei lá que mais!! Ela lá sabe o que quer e o que ainda é capaz de fazer!! Estávamos em Agosto, e não pense quem quer que por aqui passe que só ai no burgo é que se realizam os grandiosos festejos em honra do santo padroeiro, que espera o ano inteiro pendurado no pedestal da capela/igreja lá da terra à espera do dia em que o povo se reúne para lhe fazer festas!!
Á entrada de Alban fomos travados por um arraial de gente, farturas, vendedores ambulantes, lâmpadas coloridas, flores de papel, putos a correr uns atrás dos outros, atrás do nada, com as mães aflitas sem saber “o que raio anda o conard do petit garçon a faire”!! Aquilo era exactamente igual aos não menos grandiosos festejos em honra da N. Sra. Dos Milagres no lugar da Catelaria, freguesia de Santiago de Litêm, onde todos os anos actua o rancho folclórico, que lá vai e o Quim Barreiros!! E que por acaso é também a freguesia onde cresci e vivi até à uma semana atrás!!
Agradeci a boleia à senhora e resolvi misturar-me no meio da festividade. Fui atrás de um magote de gente que se perdia aldeia a dentro. E ali sim!! Ao virar da esquina encontrei o verdadeiro arraial popular!!! As mesas de bancos corridos para cabermos todos, a tasca improvisada num barracão, com uma confusão de gente a servir e a querer ser servida, que me fez esperar uma eternidade por uma cerveja. Comprei duas para que nada me faltasse!! A ementa/preçário escrita à mão em letras garrafais e números simples para todos perceberem. Mais lâmpadas coloridas pintadas à mão com uma tal camada de tinta que mal deixava passar a luz. Um “organeiro” a espremer uns acordes sofríveis em cima do palco, um monte de colunas a debitar som o mais alto possível para que toda a gente, dentro e fora da vila, pudesse ouvir os sons da festa!! Dois ou três maduros empenhados na árdua e nobre arte do equilíbrio do copo de cerveja na cabeça, enquanto meia dúzia de casais, ao mesmo tempo que ensaiavam uns passos de dança, tentavam evitar levar com algum copo que porventura pudesse cair desamparado de alguma cabeça menos hábil. Um número aproximado de bidons cortados a meio onde frangos ganhavam cor e sabor ao som do crepitar das brasas. O chão coberto de uma ramagem ainda verde, que para alem de dar um efeito mais alegre e colorido, tinha também a função de segurar a poeira debaixo dos pés de quem passava. E estava assim o arraial montado!!
Sentei-me sozinho numa ponta de um banco familiar, saquei do farnel e saciei o ratinho que já a algum tempo se tinha instalado na minha barriga. Estava tão compenetrado a morder uma coxa de frango (não fosse ele desatar a fugir pelo arraial) e a olhar para toda aquela gente que se movia de cá para lá e de lá para cá, sem perceber bem o que estavam a fazer, que nem reparei que a meu lado se tinha sentado mais um viajante solitário!! Era a senhora que me deu boleia!! A conversa que se desenvolveu foi uma partilha de ideias tão boa que me ajudou a desvanecer alguma e qualquer duvida que ainda pudesse restar sobre a autenticidade e honestidade desta viagem!! Mais uma vez afirmo que nada acontece por acaso, e é fantástico como sem nos apercebermos a vida vai deixando à nossa disposição o que realmente nos faz falta!! E andamos nós para aqui todos a correr atrás de não sei bem o quê! E tanto nos recusamos a olhar para o que nos é deixado de uma forma tão descarada bem na frente dos nossos olhos!!
Mas a noite não estava destinada a terminar por aqui (lá estão vocês a pensar que eu me embrulhei com a velhota!! Meus amigos, a senhora alem de ter idade para ser minha mãe era parecida com a Simara!! Nada que fizesse o meu estilo)!! Ouve-se uma pequena explosão, seguida de fogo de artificio. Silencia-se o som nas colunas, calasse o "organeiro", para regozijo dos meus ouvidos, e eis que entra pelo arraial a dentro um grupo de indivíduos armados com uma espécie de bateria atada à cintura. De onde e ao mesmo tempo saía mais fogo de artificio, e também um som muito bem ritmado que tomou conta do arraial!! Eram os “ Les Commandos Percu “ e como uma imagem vale mais que mil palavras, dêem vocês mesmos uma vista de olhos e digam de vossa justiça!!!
http://www.youtube.com/watch?v=BsaL-5Otba4&feature=related
Já para lá da meia noite, depois do concerto e de um serão muito bem passado, o meu corpo começou a pedir tenda e saco cama! Pela segunda vez despedi-me da senhora, agradeci o momento, a conversa e fiz-me à estrada. Andei uma boa meia hora até que o som da festa de Alban deixasse de incomodar o meu tão desejado descanso. Vi o que me pareceu ser um pomar de macieiras, sai da estrada, escolhi a que me pareceu ser a maior das árvores e montei a tenda mesmo debaixo da copa. Enrosquei-me no saco cama e ainda larguei uns palavrões a uns putos que espalhavam réstias de festa por onde passavam. Encaixei as costelas nos torrões do meu colchão e só acordei com o som dos primeiros carros da madrugada seguinte!!